Eu sei... mas não devia.

Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia...
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundo e não ter outra vista, que não as janelas ao redor.
E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz.
E, à medida que se acostuma, esquece ...
O sol..., O ar..., A amplidão!!!

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora!
A tomar café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo de viagem.
A comer sanduíches porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho, porque já é noite.
Cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e ir dormir pesado...
... sem ter vivido o dia!!!

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra!
E, aceitando a guerra, aceita os mortos... e que haja números para os mortos.
E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz.
E, não aceitando as negociações de paz, aceita ler, todo dia de guerra..., dos números...
... e da sua longa duração!!!

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone “hoje não posso”.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava ser visto.
A andar na rua e ver cartazes.
A abrir revistas e ver anúncios.
A ligar a televisão e assistir comerciais.
A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado...
... e lançado na infindável catarata dos produtos!!!

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita.
E a lutar por ganhar o dinheiro com que paga.
E a ganhar menos do que precisa.
E a fazer fila para pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro...
... para ter com que pagar nas filas que se cobra!!!

A gente se acostuma a poluição.
A luz artificial.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias da água potável.
À contaminação da água do mar.
À lenta morte dos rios.
À não ouvir mais os passarinhos.
À não ter galos na madrugada.
À não colher frutas no pé.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer!
E, em doses pequenas, tenta não perceber e vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá...

Se o cinema está cheio, senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se a praia está contaminada, molha só o pé.
Se o trabalho está duro, consola-se pensando no fim-de-semana.
E, se no fim de semana não há muito o que fazer, vai dormir cedo e ainda fica satisfeito...
... porque tem sempre sono atrasado!!!

A gente se acostuma para não ralar na aspereza,
Para preservar a pele.
Para evitar feridas, sangramentos.
Para esquivar-se da faca e da baioneta.
Para poupar o peito.
Para poupar a vida... que aos poucos se desgasta...
E que, de tanto acostumar... se perde a si mesma!!!

E então??? Que tal parar um pouco e pensar em fazer algo fora do comum? Como por exemplo, cantar na rua enquanto caminha para o trabalho, ou então olhar nos olhos de um desconhecido e dizer simplesmente olá, tudo bem com você? Será que ele vai pensar que você é louco? E daí? Tem tantos loucos na rua com vontade de fazer isso...
Quem sabe se você der ao chefe uma idéia que pode parecer ridícula, mas na qual você acredite... talvez ele nem a ache ridícula e você só vai saber se disser a ele!
Talvez você queira comprar um instrumento que você sempre quis tocar mas nunca se arriscou!
Vá tomar um sorvete diferente ou comer uma fruta daquelas que você se lambuza todo, que fica escorrendo pelo queixo e pelos dedos... nojento? Que nada! Lá no fundo você acha isso o maior barato!
Sabe aquela mágoa antiga que te deixa um nó na garganta só de lembrar? Então, chore e solte-a de vez do seu coração!
Sabe aquele parente ou amigo com quem você jurou um dia nunca mais falar? Faça uma surpresa para você mesmo e telefone pra ele!!!
Faça hoje do seu dia um dia fora do roteiro que você escreve todas as manhãs.
Perdoe-se e permita-se e você verá como a vida se torna cheia de alegria e de aventura, afinal de contas...
A gente se acostuma!!!